sábado, 7 de novembro de 2009

DESENVOLVIMENTO LOCAL E CONSTRUÇÃO SOCIAL: O TERRITÓRIO COMO SUJEITO

DESENVOLVIMENTO LOCAL E CONSTRUÇÃO SOCIAL: O TERRITÓRIO COMO SUJEITO

Franklin Coelho

A intensidade com que as experiências de desenvolvimento econômico local se desenvolvem no Brasil sugere uma reflexão sobre seus caminhos. A década de 90 foi marcada pela emergência desta temática e, ao analisarmos as experiências mais significativas, podemos identificar três modalidades de ação local, considerando alguns aspectos básicos que os diferenciavam:

• a primeira modalidade representa um desdobramento modernizador de formas de atuação mais tradicionais na área urbanística ou político-administrativa;
• a segunda modalidade refere-se àquelas experiências que vêm ancoradas em ações locais de geração de trabalho e renda;
• uma terceira modalidade são experiências de constituição de pactos territoriais e de redes de desenvolvimento econômico local.

Indicamos a terceira modalidade como aquela que estava mais próxima ao que definíamos como experiências de desenvolvimento econômico local, pela presença de elementos constituintes como: a existência de redes econômicas, formas de integração horizontal e vertical de cadeias produtivas, parcerias entre atores públicos e privados, serviços especializados para microempreendedores e a institucionalidade desta ambiência produtiva .

Deste modo, consideramos o desenvolvimento econômico local como a constituição de uma ambiência produtiva inovadora, na qual se desenvolvem e se institucionalizam formas de cooperação e integração das cadeias produtivas e das redes econômicas e sociais, de tal modo que amplie as oportunidades locais, gere trabalho e renda, atraia novos negócios e crie condições para um desenvolvimento humano sustentável.

O foco em termos de desenvolvimento local marcou a visão crítica às ações locais pontuais, delimitadas no tempo e no espaço, com perfil de atendimentos a carências da população, sem a dimensão de um desenvolvimento mais integrado e sustentável. Esta dimensão de integração e sustentabilidade significou um diálogo das experiências de desenvolvimento econômico local com outras olhares - ambiental, social, ético-político – permitindo que pensássemos uma nova institucionalidade do local a partir da constituição de quatro ambiências: econômica, ecológica, social e política.

Entretanto, o foco estratégico no desenvolvimento econômico local tem uma especificidade e uma intencionalidade. Uma especificidade na medida que o desenvolvimento econômico sempre foi pensado a partir de uma ação macro, centrada em políticas econômicas da esfera federal. Colocar a constituição de uma ambiência econômica local significa repensar toda a teoria de desenvolvimento e relacioná-la com sua dimensão territorial. Com o intenso processo de geração de interatividade a uma velocidade exponencial crescente em termos de comércio, finanças e informação, e com as mudanças políticas associadas a modificações radicais de arranjos institucionais, os paradigmas de desenvolvimento caem por terra.

Intencionalidade, em segundo lugar, porque o desenvolvimento local aparece neste debate como uma noção relativa em relação ao global, como uma resposta da sociedade a estas mudanças avassaladoras e como a constituição de sujeitos sociais locais com capacidade de intervenção. Partindo de uma concepção integral e integradora de desenvolvimento, afirmando o singular e as singularidades estruturais num cenário de intensa fragmentação territorial, a promoção do desenvolvimento fica entregue ao esforço dos atores locais.

Nesta medida, a análise destas experiências deve ser feita numa visão sistêmica., para que não fiquemos num debate pendular entre o local e o global, ou ainda, entre os fatores endógenos e exógenos. Ao trabalhar os dilemas de desenvolvimento local - pensado como desenho, construção e processo – é necessário pensar o cenário externo no qual se insere determinado território, o que Boisier chamou da brisa que levanta e mantém a pipa no ar, em sua metáfora sobre processos endógenos e exógenos de desenvolvimento.


Cenários macro: podemos apreender com a história sobre a brisa que nos embala?

A compreensão mais precisa de cenários macro, nos quais podemos pensar também focos estratégicos em que a construção de desenvolvimento territorial se integra a um processo de democratização da economia, constitui um aspecto central a ser debatido sobre caminhos alternativos de um processo menos perverso e mais humano de globalização. Em primeiro lugar, devemos qualificar o que tem significado uma estratégia desenvolvida pelos grandes grupos econômicos de inserção dos estados-nação no mundo globalizado e em que sentido o desenvolvimento local e a economia solidária constituem caminhos alternativos.

A globalização, permeada por tensões, “corresponde a uma nova fase de expansão do capital, não sendo processo homogêneo e sequer inexorável, como se quer fazer crer. Nesse processo, a hegemonia do capital financeiro influencia o comportamento de empresas e governos, favorecendo o curto prazo e o combate à inflação, em detrimento do progresso econômico-social e das políticas de longo prazo. Nesse contexto, o mercado único do dinheiro é operado não somente por bancos e empresas, mas sobretudo por investidores institucionais (fundos de pensão e investimentos). O trabalho, que não acompanha esse ritmo, sofre as dramáticas conseqüências da mobilidade dos investimento e da internacionalização do capital” .

Para melhor compreender este momento, devemos buscar na história a compreensão destes períodos de transição, de continuidade e ruptura, nos quais se misturam e se integram simbioticamente tradição e inovação. Erick Hobsbawn, ao retratar os novos termos que surgem com a modernidade - indústria, fábrica, operário, capital, ferrovia, liberalismo, engenheiro, socialismo – o faz no que chamou a esteira da “dupla revolução” . Esta dupla revolução – material e cultural – pode nos ajudar a pensar este momento de transição, de tal modo que este permita integrar no mesmo processo histórico a reestruturação produtiva e o fenômeno da globalização

Para novos objetos e funções, novos significados nos quais os agentes sociais representaram as múltiplas faces da transformação que faria inaugurar uma nova etapa do homem, marcada pelas aceleradas e ininterruptas alterações dos padrões de comportamento, organização e funcionamento da sociedade.

Vivemos um período semelhante em que esta dupla mudança está em curso e a compreensão deste cenário pode ser entendida em três vertentes de periodização:
• Uma primeira identifica uma ruptura com a modernidade, na qual a pós-modernidade institui a diversidade e o pluralismo - em claro confronto com o modelo cultural previamente dominante.
• Uma segunda que a compreende como ápice do processo de internacionalização do sistema capitalista .
• Uma terceira corrente procura identificar as interdependências entre uma nova fase de reestruturação tecnológica e organizativa, que afeta formas de produção e gestão empresarial, e as condições crescentes de globalização, configurando um período de transição que tem seu início na década de 70, com o esgotamento do regime de acumulação fordista .

Estas três formas de compreensão deste momento, que alguns identificam como pós-moderno, outros como ápice do movimento de internacionalização do capital ou ainda como momento de transição da acumulação fordista para uma acumulação flexível, expressam correntes de pensamento nos quais se identificam distintas formas de rupturas e descontinuidades. Recuperando a idéia de uma dupla revolução, estes processos pode ser pensados a partir de um duplo movimento, com dinâmicas próprias mas integradas numa mesma temporalidade.

De um lado, uma nova fase de reestruturação tecnológica e organizativa que afeta as formas de produção e gestão produtiva., com introdução da microeletrônica, flexibilização da produção, transição para novas formas mais eficientes de produção, mudanças radicais na gestão empresarial, renovação incessante e rápida dos produtos e processos produtivos, identificação precisa do processo da segmentação da demanda e a existência de nichos de mercado nos quais se trabalha a diferenciação de produtos numa estratégia dinâmica.

A estas mudanças estruturais se juntam as condições de crescente globalização, com seu contexto caracterizado por: desregulação financeira, maior abertura externa das economias e emergência de blocos econômicos como resposta às maiores exigências de mercado, além das dimensões culturais do maior fluxo de informações através da internet e seu impacto econômico e social.

Estes dois movimentos - elementos materiais de inovação , de um lado, e elementos culturais e de regulação política, de outro, identificam um novo cenário que não se reduz apenas a uma dimensão de ápice de internacionalização do capital.

Estamos diante de uma transformação – material e cultural - que dá continuidade ao processo de internacionalização do capital, mas que vai além de uma evolução histórica do processo de concentração e centralização do capital. Estamos diante de uma nova fase de acumulação, cujos impactos em sua dimensão material e simbólica identificam distintos campos de ação política, para além de uma política de Welfare State ou de estratégias de desenvolvimento de capitalismo autônomo frente às relações de dependência.

O desenvolvimento deixa de ser desigual e combinado para se transformar em fragmentado, no qual os fluxos econômicos passam por redes de competitividade que excluem social e territorialmente. A perda de contigüidades territoriais e os movimentos de desterritorialização colocam um campo de ação de integração e inclusão que é tanto social quanto territorial. Para se contrapor a esta mobilidade territorial dos grandes grupos econômicos é necessária uma ação integrada, capaz de articular territórios e grupos sociais excluídos numa grande rede de solidariedade e cooperação. E necessariamente terá de ser uma ação mundial, na medida em que a humanidade tem se transformar em sujeito de sua própria existência .

Nova materialidade e novos símbolos nos colocam diante de novas formas de tirania e alienação. A tirania da flexibilização nas relações de trabalho, a tirania da moeda como se referiu Milton Santos ou a tirania do “novo colonialismo”, que impõe ajustes internos e formas de regulação de acordo com as necessidades de um capital financeiro transnacional volátil, capaz de definir a asfixia do país que ele determina ser o alvo em determinada conjuntura .

A compreensão deste duplo movimento em termos mundiais nos faz pensar em duplos desafios e estratégias combinadas. É interessante notar que Samir Amin reconhece a contribuição da escola da regulação à compreensão deste duplo movimento . Procurando integrar a crise do fordismo a outros aspectos da crise global do sistema instaurado pós guerra, Samir Amin sugere que o ciclo de regulação fordista está diretamente ligado a formas de regulação de estados nacionais, permanecendo estritamente nacionais, construídas sob a égide de sistemas independentes de produção.

O movimento em direção a uma economia global e o esgotamento do regime de acumulação fordista caracteriza este período de transição. O neoliberalismo se constitui, neste cenário, no ideário de um estado mínimo que fragmenta, flexibiliza, desregulamenta e precariza o mundo do trabalho, como se esta fosse a única forma de inserção dos estados-nação no mundo globalizado.

Frente a um movimento que globaliza a economia e amplia espaços de colonialismo cultural, os caminhos societários devem articular estratégias mundiais - que afirmem a possibilidade de uma nova sociedade global mais humana - com estratégias desiguais e combinadas a partir de ações internas em cada país.

Estas dinâmicas internas têm seu campo de disputa nos projetos de reforma de estado e de novas formas de regulação. Ao lado dos ajustes estruturais e de uma política econômica de curto prazo, está fundamentalmente em disputa o novo desenho da relação estado, mercado e sociedade. É neste campo de disputa que se insere a armadilha do projeto neoliberal: a oposição dual entre mercado e Estado, como se qualquer possibilidade de negação de um papel regulador do mercado significasse a defesa de uma estatização da economia ou do socialismo de estado.

Para além do mercado e do Estado, as experiências de movimentos sociais e governos populares têm reafirmado o caminho de construção de uma esfera pública democrática. Esta ação de radicalização da democracia e de construção de uma esfera pública democrática esteve nos anos 80 e 90 diretamente ligada aos processos de descentralização política.

No Brasil, os dois caminhos se contrapuseram. O projeto do governo federal que desconcentrava e descentralizava administrativamente para os municípios a responsabilidade pela ação na área social, mas não descentralizava recursos. Ao contrário, trabalha até hoje um projeto de reforma tributária que concentra recursos nas mãos do governo federal, se contrapondo a uma tendência de aumento de receitas estaduais e municipais que ocorreu a partir da Constituição de 1988.

Um outro caminho de descentralização nasceu de movimentos sociais e se consolida nas experiências de governos populares no plano municipal e estadual As formas de gestão democráticas, com controle social e construção de uma esfera pública cidadã, foram legitimadas e institucionalizadas a partir de experiências como o orçamento participativo, a bolsa-escola, os centros de cidadania e as redes de acesso aos serviços públicos.

Mas os caminhos alternativos construídos na década de 90 mostram que a experiência não pode ficar restrita a modelos de gestão. O mundo do trabalho passa ser o centro de atuação e ponto nodal na construção de qualquer caminho alternativo.

O trabalho está também no centro do debate da construção de novas formas de regulação. Este debate tem seu foco nas reformas de estado que desmontam modos de regulação fordista e o reconstroem sob uma ótica de redução do papel do Estado e valorização do papel do mercado. Há aqui o que podemos chamar de caminhos por dentro e por fora destas novas formas de regulação.

Por um lado, políticas setoriais de emprego que trabalham formas de acompanhamento da reestruturação produtiva e da acumulação flexível. Políticas que acompanham as novas necessidades de qualificação do emprego, ou a integração da demanda do mercado com a oferta de trabalho. Esta é o que poderíamos chamar de uma estratégia por dentro do processo de transição de regime de acumulação fordista para uma acumulação flexível.

Mas o campo do trabalho coloca hoje a necessidade e a possibilidade de uma estratégia por fora desse movimento de construção de um modo de regulação com base na transição para um regime de acumulação flexível.

Esta nova fase de reestruturação tecnológica, econômica e organizativa constitui um profundo processo de mudança social, institucional e cultural. Este caminho significa estender para a economia um caminho de radicalização democrática, trabalhando na construção de uma economia popular “baseada em valores de solidariedade e de cooperação, não articulada em torno do capital senão do trabalho e da criatividade social, de tal modo que permita aos setores populares superar conjuntamente a alienação e a exclusão e a heteronomia, mediante a progressiva ampliação de espaços com os quais os homens conquistem de novo o controle perdido sobre os meios e condições de vida”.

Este é um caminho que é necessariamente territorial, porque trabalha com uma política pública mais horizontal, não verticalizada de cima para baixo e incorpora uma ação integrada e de cooperação de atores sociais nos espaços excluídos pelas redes competitivas construídas na globalização da economia.

Em termos territoriais, o processo de globalização da economia se caracteriza pela constituição de fluxos econômicos que excluem territórios a partir de :
• movimentos de desestruturação e reestruturação do tecido produtivo e empresarial preexistente, num processo de desinversão e reinversão de capitais;
• mudanças na direção de novas formas de produção mais eficientes, que concretizam a atual revolução tecnológica e organizacional;
• introdução da microeletrônica, que abre a possibilidade de vincular as diferentes fases dos processos econômicos;
• alta volatilidade e mobilidade da produção, ciclos produtivos cada vez mais curtos, que aumentam a vulnerabilidade das formas de produção tradicionais;
• existência de mudanças radicais nos métodos de gestão empresarial;
• importância da qualidade e diferenciação dos produtos como estratégia de competitividade dinâmica;
• integração de grandes mercados;
• fortalecimento do setor das pequenas e médias empresas vinculadas à grande empresa num esquema de "terceirização".

Como um contramovimento à fragmentação territorial, renascem as identidades culturais e políticas aos níveis regional e local. O território se configura em espaço e sujeito dessa ação integrada de organizações econômicas de base popular. A análise de cenários e a necessidade de políticas públicas nacionais que se oponham a este processo perverso de globalização é o mesmo que nos sustenta a pensar o desenvolvimento de um território como resultado de esforços endógenos, no qual a globalização não aparece apenas como uma leitura ameaçante, mas como oportunidade de surgimento de novos sujeitos sociais, na qual o território organizado se constitui num objeto de construção social e política que se transforma em sujeito.

O desenho e o conhecimento do território

A organização do território que objetiva o desenvolvimento local deve ter como ponto de partida o pacto territorial que viabilize a associação de interesses promovida entre os diversos atores regionais, que se conservam independentes, com vista a obtenção de determinados objetivos. Isto pressupõe a indicação de uma estrutura organizacional que dê conta da constituição de um espaço de interação dos diversos atores e da construção de uma entidade responsável pelo encaminhamento e implementação das diversas ações propostas.

O desenho básico sugere vários formatos institucionais, em função de distintas territorialidades, configurando o encontro, num contexto comum, de atores de naturezas diferentes e atuantes num mesmo território. Entretanto, podemos identificar elementos comuns destes formatos institucionais que expressam requisitos para os pactos territoriais, a saber:
• identificação e mobilização de diversos atores, em torno de programas estruturantes;
• necessidade de um alto nível de acordo entre as instituições, empresas e sociedade civil organizada, para evitar qualquer tipo de intervenção que comprometa a finalidade pública;
• definição de um projeto que seja orientado ao desenvolvimento das atividades produtivas de um território;
• desenvolvimento partindo “de baixo”, baseado em iniciativas idealizadas e gerenciadas em nível local, com prazo de execução definido;
• “criação” de agentes gerenciadores que expressem o acordo e a união entre os atores envolvidos e que coordenem as ações de modo a torná-las eficazes;
• necessidade de uma boa base estatística informativa.

Estes diversos formatos institucionais – consórcios, câmaras, fóruns, agências - geraram campos básicos de ação que exigem um conhecimento do território e de sua especificidade. Uma ação de planejamento, integrando projetos corporativos e públicos e construindo ações integradas territorialmente. No campo da democratização do acesso à oportunidades econômicas e de mercado, abriram-se possibilidades para os estudos das cadeias produtivas e das potencialidades de recursos locais.

Esta dimensão de conhecimento tem nos exigido trabalhar a diferença entre a constituição de bases de dados, a elaboração de informações e a produção do conhecimento sobre a realidade local. A constituição das bases de dados territoriais tem uma referência em análises de potenciais de atração de investimentos privados. Concentradas nos recursos naturais, populacionais, econômicos, sociais e político-administrativos, procuram difundir vantagens comparativas de determinado local.

Estas bases de dados eram constituídas de forma que o território fosse visto como objeto e não como sujeito do processo de desenvolvimento. Tendo como referência a constituição de pólos de desenvolvimento e a imposição de vocações, as informações eram selecionadas com base nas potencialidades de concentração territorial e econômica de determinado local.

As experiências mais recentes de desenvolvimento local têm trabalhado com metodologias de planejamento estratégico, mas nem sempre incorporando a visão processual que integra lugares e fluxos de acumulação de processos sociais, que não podem ser trabalhados com bases de dados apenas quantitativas e com informações defasadas no tempo. Neste sentido, não estamos construindo apenas um diagnóstico no qual queremos identificar indicadores e verificadores de problemas. Estamos trabalhando numa análise de processos históricos no qual o conhecimento se constitui por dentro do território, como se referia Weber utilizando o termo alemão VERSTEHEN, significando conhecer por dentro, por meio da intuição e da empatia, como oposto ao conhecimento por fora, por meio da observação e do cálculo.

Deste modo, conhecer o território significa analisar historicamente o jogo social dos atores, sua interatividade, a cultura empreendedora, em síntese, o lugar e os fluxos materiais e imateriais que produzem socialmente o território.


A construção social e os novos atores

O debate em torno de políticas públicas frente aos impactos perversos do processo recente de globalização tem apresentado dois caminhos alternativos, que devem ser trabalhados de forma integrada: o desenvolvimento local e a economia solidária. Ao lado das experiências de desenvolvimento local tem ocorrido, nos últimos anos, uma renovação e uma intensificação de ações econômicas alternativas, orientadas para introduzir relações de cooperação e solidariedade no cenário de intensa fragmentação social e territorial.

A constituição de redes de economia solidária tem sido um tema que aparece como periférico no debate sobre desenvolvimento local. Mas a compreensão destes novos atores sugeriu um debate conceitual sobre economia popular e solidária. Corragio , nos início dos anos 90, identificava a economia popular a partir das unidades econômicas familiares. Há um certo sentido nesta identificação, na medida em que muito dos núcleos de economia popular nascem de relações familiares e se estendem por relações de cooperação em determinado território. Mas estas novas organizações populares não se reduzem apenas a organizações econômicas de base familiar, mas abrangem as diferentes organizações de subsistência urbanas e rurais, formas cooperativas e autogestionárias, experiências comunitárias e associativas de recuperação e desenvolvimento de artesanato, iniciativas tecnológicas alternativas e socialmente apropriadas e variadas iniciativas que surgem das atividades de educação popular, capacitação, desenvolvimento local e comunitário.
Singer identifica a empresa solidária a partir das formas de organização autogestionárias e cooperativas. Contudo, o debate não pode se limitar a formato organizacional - cooperativas, unidades domésticas, rede de pequenos empreendedores - mas a compreensão do que esta transformação social está significando. O cenário, o esgotamento de um padrão de acumulação capitalista, no qual as sociedades e economias enfrentam uma série de mudanças e problemas que obrigam a repensar o desenvolvimento econômico, a função pública, as relações entre os setores público e privado, a organização do Estado, envolve .oportunidades e ameaças. Como problema fundamental: o crescimento do desemprego e a separação entre o crescimento econômico e a criação de emprego. Como oportunidade, a capacidade de uma ação dos sujeitos sociais no sentido de construção de uma economia alternativa.
A construção desta economia alternativa envolve não só as redes de economia solidária que têm se constituído nestes últimos anos, mas também atividades e processos que vão além do especificamente organizacional, acolhendo a noção de solidariedade e distinguindo-se de um debate especificamente econômico.

O surgimento e o desenvolvimento destas organizações e experiências nos colocam alguns dilemas cruciais: como pensar uma efetiva transformação democrática da economia e quais as possibilidades de consolidação de uma economia solidária fundada em valores do trabalho e cooperação?

Os projetos de desenvolvimento local nos quais as relações de cooperação ainda estavam se estabelecendo, com a ausência de um centro coesionador e difusor de uma cultura de cooperação, tinham ali seu principal fator de não sustentabilidade.

Neste contexto, em que as relações entre cooperação e competitividade se mostram tênues, podemos identificar vários níveis de cooperação em termos de desenvolvimento econômico local:


TIPOLOGIA DA COOPERAÇÃO Dimensão econômica Dimensão Territorial
Cooperação nas relações de trabalho Formas associativas de organização da produção No interior do espaço de produção ou no mesmo em determinado território no qual se articula o processo produtivo, centrado principalmente em relações solidárias no âmbito de um determinado processo de trabalho.
Cooperação nas condições de produção Cooperação na formação de redes de fornecedores de uma empresa, na compra de matéria prima, no desenvolvimento tecnológico ou na rede de comercialização articulada com a cadeia produtiva Cooperação no mesmo território no qual está inserido determinado cluster. Tem uma característica local de construção de uma ambiência produtiva, envolvendo mais outros atores e uma sustentação institucional local através da construção de identidade e de instrumentos como a agência de desenvolvimento
Cooperação no interior das cadeias produtivas Encadeamentos produtivos atuando sobre os pontos de estrangulamentos; inovação dos produtos, integração de ramos produtivos ou uma logística mais complexa Tem uma dimensão regional e está ligada à construção de formas de cooperação institucionais capazes de viabilizar uma integração da cadeia produtiva com o mercado externo


Estas três dimensões de cooperação envolvem também um campo de competitividade em torno das relações de mediação entre a ambiência produtiva e a economia globalizada, permitindo encadeamentos distintos a partir do olhar do ator que se coloca neste papel. A constituição de uma ambiência produtiva na perspectiva de uma globalização mais humana passa pela constituição de elos de integração da economia solidária com o mercado. Estes elos aparecem tanto nos instrumentos de acesso ao crédito – bancos populares como o PORTOSOL e o VIVACRED, como também nas formas de moeda social constituídas, sejam as feiras de trocas, sejam os selos sociais de comércio solidário. Há portanto nesta construção social do território mudanças de relação de poder. A economia, e a economia local não é diferente, para muito além de uma relação de oferta e procura, se constitui numa relação de poder.


O processo e as relações de poder

Afirmar que desenvolvimento local é uma noção relativa se consolida na medida que há uma intencionalidade de alteração de relações de poder no interior da economia local. O desenvolvimento local se constitui numa estratégia territorial que se contrapõe a visões de crescimento econômico mais tradicionais, centradas principalmente em setores econômicos de ponta e nos lugares que são definidos como capazes de uma integração competitiva aos mercados globais. Como centro de uma estratégia alternativa de desenvolvimento e como noção relativa ao global, o local engloba distintas territorialidades, ou seja, distintas ambiências produtivas e institucionais que exigirão processos específicos de articulação de atores e de construção de identidades.

O desenvolvimento local expressa uma estratégia territorial diante do impacto de fragmentação econômica e socioespacial gerada pelas novas redes e fluxos econômicos que surgem nesta transição para um regime de acumulação flexível. Esta dimensão territorial se expressa num caminho de construção social nos quais se desenvolvem formas distintas de cooperação. Cooperação e competitividade se transformam em palavras mágicas que justificam as ações dos clusters e condomínios industriais.

Entretanto, pouco tem se debatido sobre a tensão que se manifesta nestes dois processos presentes em termos de desenvolvimento local. Porter trabalha esta relação no sentido de uma cooperação e competitividade empresarial que determina uma estratégia no território. O desenvolvimento local deve ser pensado enquanto um pacto territorial no qual está presente a idéia-força de desenvolvimento e alta mobilização de recursos locais, significando:
• uma estratégia integrada de instituições locais no enfrentamento da fragmentação territorial e exclusão econômica, social e cultural;
• fortalecimento de lideranças locais, tanto comunitárias e sindicais como empresariais;
• criação de uma identidade e um sentimento de solidariedade social e territorial que rompa com o individualismo exacerbado;
• fortalecimento de um controle social e de uma cultura de responsabilidade pública;
• mobilização de diferentes culturas criando redes e uma interconectividade que opera numa dimensão coletiva e quebra o isolamento;
• mobilização de saberes locais criando uma cultura de projetos que quebra com a dependência a agentes externos.

Os processos de desenvolvimento local mostram que a identidade territorial, assim como a sinergia social, não deve ser entendida como algo que simplesmente existe devido a uma determinada conjugação de fatores geográficos e circunstâncias, mas sim como algo que é construído historicamente. Esta identidade surge como resultado de processos políticos, sociais e culturais, que fazem com que os habitantes de um determinado território consolidem a percepção do fato de que, apesar das diferenças e divergências que possam ter, também têm fortes afinidades e muitos interesses em comum.

O desenvolvimento local é, antes de mais nada, uma atividade societária compartilhada pelos vários atores sociais constituindo uma comunidade polifacética, contraditória e difusa, mas comunidade, enfim, localmente específica e localizada” . Da participação dos diferentes segmentos da sociedade na discussão dos problemas locais consolida-se a identidade e o território enquanto sujeito social.

O pacto territorial se constitui uma marca pública que não pode se confundir com uma estratégia corporativa. Duas estratégias têm se desenhado na construção dos pactos territoriais e têm se expressado nas marcas construídas em cada território, desenhando-se o marketing público e o marketing empresarial.

FATOR MARKETING PÚBLICO MARKETING EMPRESARIAL
Tipo de Cooperação Cooperação integrada a uma estratégia da região
Cooperação com subordinação a uma estratégia da empresa âncora

Gestão da Informação Democratização da informação permite a ação autônoma dos atores territoriais
Controle das informações impondo um ator mediador entre mercado regionais e globais
Papel do Estado O estado como elemento facilitador da integração
O estado facilitando a privatização de uma marca pública
Gestão da Marca Gestão estratégica de estado além do horizonte de uma ação de governo A apropriação da marca dificultando a integração e cooperação

Pesquisas com atores têm sido contundentes no sentido de expressar estes dois caminhos que se constituem em duas estratégias de desenvolvimento local: uma pública e outra mais corporativa .

Além deste dilema, outras dificuldades aparecem nesta construção social do território. O pacto territorial tem se transformado em um fortalecimento de lideranças locais, mas não tem sustentado a institucionalização de redes de economia solidária. Por outro lado, a coexistência de conselhos ou fóruns com o mesmo perfil de atuação – Comunidade Ativa, Agenda 21, Câmaras de Desenvolvimento ou similares – não favorece um controle social efetivo e uma concertação estratégica dos atores. As experiências têm demonstrado que não se impõem identidades territoriais. Estas identidades se constroem socialmente a partir de um espaço social herdado. Espaço este que se caracteriza pela fragilidade dos recursos de poder de uma economia popular e solidária.


Quais são os fluxos de acumulação que têm se constituído no território?

As experiências hoje no Brasil se realizam de forma fragmentada, como um arquipélago de experiências. Em termos de um cenário macro, não podemos pensar o desenvolvimento local fora da construção de um pacto federativo. De fato, trata-se de colocar no centro da discussão do desenvolvimento a capacidade de inclusão social, de um lado, e de articulação interregional, de outro. Isto significa dizer que a tendência mais favorável à continuidade de um pacto federativo mais equilibrado horizontalmente é a sustentação da descentralização de recursos em torno de um novo desenho institucional que articule as diversas competências especificas e concorrentes, identificando as diferentes identidades territoriais e suas vantagens competitivas.

Ao lado destes aspectos macro, os processos devem acumular no sentido da constituição de um território organizado enquanto sujeito. Neste sentido, cooperação e competitividade não se constituem em faces de uma mesma moeda, mas sim qualificam atores, identificam estratégias e estabelecem, neste território organizado, novas relações de poder.

Desta forma recupera-se uma radicalidade democrática, particularmente em termos de desenvolvimento local. Esta dimensão, ainda não suficientemente explorada, significa integrar pactos territoriais com controle social participativo e gestão pública estratégica.

Esta opção da ação se fundamenta nas tendências de mudança da administração pública brasileira, manifestas principalmente nos governos municipais e que, agora, apresentam o desafio de implementação em termos econômicos. Esta tendência assinala um movimento de ruptura de algumas das características centrais da gestão pública no país, tais como: centralização decisória e financeira; fragmentação institucional; atuação setorizada; clientelismo; padrão verticalizado de tomada de decisão e de gestão; burocratização e padronização dos procedimentos; exclusão da sociedade civil dos processos decisórios; impermeabilidade das políticas e das agências estatais ao cidadão e ao usuário e ausência de controle social e de avaliação das políticas públicas, esta também colocada em termos de desenvolvimento econômico em determinado território. O território organizado se transforma em lugar de sonhos e devaneios - lembrando Milton Santos - de uma globalização mais humana.

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