domingo, 8 de novembro de 2009

CONSCIÊNCIA CRÍTICA

CONSCIÊNCIA CRÍTICA
Rogério de Almeida Cunha - UFMG
INTRODUÇÃO
O termo conscientização parece que nasceu no Brasil, e tem sido atribuído muitas vezes a Paulo Freire. O método de alfabetização deste pedagogo se baseia teoricamente numa análise da consciência da população, especialmente do adulto não alfabetizado. Segundo a análise de Paulo Freire, há três tipos de consciência: a consciência mágica, a consciência transitivo-ingênua e a consciência critica.
l ) Consciência mágica é a consciência dos grupos humanos que estão de tal maneira imersos nos acontecimentos do dia-a-dia, que não percebem nem as verdadeiras causas dos acontecimentos, nem o processo a que se chama processo da História .
2) Consciência transitivo-ingenua é a consciência dos grupos humanos que já conseguem perceber de alguma maneira que os acontecimentos de cada dia não são frutos do acaso nem de forças extramundanas. Percebe-se que a história humana e um desenvolvimento contínuo do próprio homem. Entretanto, a visão das causas ainda é insuficiente e, principalmente, ainda não tem o dinamismo que impele a tentar corrigir as próprias causas dos acontecimentos negativos. As pessoas percebem que a pobreza é fruto de injustiça, mas não analisam corretamente esta injustiça, ou não vêem como lutar contra ela.
3 ) Consciência critica é a consciência que superou os dois limites: o limite que afoga a consciência na ignorância e na inércia, o limite da inércia e da impotência perante a realidade humana.
Sendo assim, a finalidade precípua do método Paulo Freire é a formação da consciência crítica. Daí duas perguntas iniciais: o que é a consciência critica? Como é que se forma a consciência crítica?
A palavra conscientização nasceu com este sentido: formação da consciência critica. Tendo em vista a variedade imensa de sentidos que se tem emprestado a esta palavra, é importante notar que este significado original é bastante definido. O uso inflacionário e desgastante esvaziou-a do que ela tem de mais profundo. O sentido da palavra pode entretanto ser recuperado através da resposta a tais perguntas que são o desdobramento das interrogações acima formuladas: l) o que é consciência? 2) o que é crítica? 3) como nasce a consciência crítica?
l) O QUE É CONSCIÊNCIA
A palavra consciência tem aqui um sentido filosófico, e não psicológico. Em psicologia, usa-se aliás mais freqüentemente o termo "o consciente" e designa o conjunto de fenômenos e dados psíquicos que a pessoa é capaz de verbalizar reflexamente. Opõe-se ao "inconsciente", que é objeto das pesquisas psicológicas e dos métodos de psicanálise divulgados hoje em dia. O princípio básico é de que o comportamento humano é, em grande parte, comandado pelo "inconsciente".
Quando se fala em ‘formação da consciência critica’ ou em "conscientização", o termo "consciência " não significa tampouco formação de uma consciência científica. Consciência não e sinônimo de ciência e não se pode dizer sem mais que a transmissão da ciência cria uma consciência crítica. Muitas vezes ela nem modifica a consciência, a qual pode muito bem continuar imersa em explicações mágicas que tenham aparência científica, ou continuar paralisada pela inércia da apatia ingênua .
A consciência não se encontra nem no campo dos comportamentos psicológicos nem no nível do saber. Ela é entretanto captável unicamente através de ambos: a consciência inclui o reagir psicologicamente e de fato, assim como o saber.
A consciência é, pois, fundamentalmente a capacidade humana, e estritamente humana, de prever e planejar previamente as próprias atividades, de refletir sobre elas no decorrer da ação, e de cotejar os resultados seja com os planos prévios, seja com princípios e ideais teóricos ou práticos. A consciência é a capacidade de planejar , refletir e criticar. Esta capacidade é normalmente captável pela constância em certo tipo de comportamento e pela relação natural de conhecimento .
Embora a análise acima acenada de Paulo Freire seja criticada como insuficiente, ela oferece oportunidade de compreensão inicial do que expusemos até agora. Assim, há comportamentos constantes que são típicos da consciência mágica. O homem acredita que os acontecimentos são frutos de forças extraterrenas, de malefícios, e só aceita intelectualmente as explicações que reforcem este comportamento. Inversamente o homem crítico já toma uma outra atitude profunda, antes mesmo de se dar conta de que sua atitude é crítica. Ele é capaz de verbalizá-la e de traduzi-la em conceitos, mas esta atitude é fundamental e anterior ao nível psicologicamente consciente.
Que significa, pois, o adjetivo "crítica"?
2) O QUE SIGNIFICA "CRÍTICA"
Normalmente, opõe-se ao conceito de atitude crítica o termo atitude ingênua. A ingenuidade ou falta de senso crítico é, às vezes, mítica, enquanto se baseia em explicações fora da realidade, e muitas vezes participa simplesmente do senso comum, ao qual adere sem maiores considerações.
A adesão pacífica ao senso comum não é meramente casual. Ela tem uma raiz bastante detectável, e portanto modificável. Sabemos que o senso comum é a maneira habitual de pensar e agir ou reagir dentro de uma coletividade humana. Outros grupos ou outras coletividades podem muito bem pensar ou agir diversamente, e têm assim outro senso comum. Além disso, a constância e profundidade do senso comum podem ser tão importantes que o grupo se julga dividido e agredido quando alguém pensa ou age diversamente, e expulsa os dissidentes. Neste sentido o senso comum une fortemente um determinado grupo humano, e forma a base de sua unidade . Os planos, as reflexões e as críticas são feitos a partir dessa unidade constante do pensar e do agir.
Atualmente tem-se discutido muitíssimo sobre este fenômeno, sob o titulo de ideologia. A ideologia é inconscientemente herdada ou dos antepassados ou do ambiente vital. Por isto ela determina com bastante profundidade os comportamentos e a atitude profunda das pessoas que nasceram e se desenvolveram no seu seio. A atitude profunda de uma pessoa que sempre viveu em ambiente miserável e subumano é muito diferente do comportamento fundamental e constante de quem vive em um meio ambiente saudável. A educação da consciência depende pois muito do ambiente em que o grupo vive e se desenvolve . Consequentemente, a modificação do que se chamam as estruturas do grupo é de capital importância.
Uma pessoa que deixa o ambiente originário e passa a outro, tem que modificar a sua maneira de pensar e de agir, ou seja, a sua ideologia. Ela tem que passar a pensar e agir de maneira a se ligar ao grupo novo, que passou a integrar. Ela tem necessidade de tornar isto legítimo. A ideologia de um grupo qualquer procura legitimar todas as atitudes que o grupo tem, e procura tornar aceitáveis às pessoas as maneiras de agir e reagir impostas pelo grupo. Na nossa sociedade, os grandes meios de comunicação desenvolvem neste sentido uma função vital.
É por causa deles que o grande público aceita e se acostuma depressa com acontecimentos e realidades até mesmo repugnantes. Eles fazem acreditar que são normais certas coisas até mesmo absurdas: a propaganda de cigarros procura fazer acreditar que fumar aquela marca é sinal de prosperidade. Sempre que os jornais noticiam crimes, titulam os autores de marginais, assassinos, sem acenar minimamente às causas que levaram a pessoa a cometer desatinos independentes de sua vontade. A propaganda cria necessidades totalmente supérfluas, unicamente com a finalidade de criar mercado para o que é produzido. Há toda uma campanha direcionada para as crianças, porque o público infantil pressiona os pais para a compra de artigos supérfluos, às vezes até em prejuízo de compra de outros ítens básicos e fundamentais. E a escola procura internalizar os comportamentos socialmente aceitos.
As vezes, é evidente que o que a ideologia afirma não é verdadeiro, como no caso de que "todas as coisas boas da vida começam no Banco X: carros, televisão, motocicletas, geladeiras e os objetos que tornam a vida melhor e mais agradável", ou em casos semelhantes. Mas ninguém protesta eficazmente contra a sua contínua afirmação. A repetição de tais 'slogans' (ideologemas) passa a recomendar uma série de atitudes, o que é aliás a intenção da propaganda. Através da realização do ritual imposto pela propaganda, vai-se criando uma série de convicções que velam e escondem totalmente a realidade.
As coisas e os acontecimentos passam então a ser compreendidos e interpretados não mais em função do que são, em base a uma percepção correta, mas em base ao que a ideologia afirma deles, ou seja, a partir de uma imagem distorcida, que esconde a realidade. A realidade que se esconde atrás da propaganda não é a da realização do homem "que sabe o que quer" ou que atinge os bons sonhos, mas a criação de necessidades artificialmente geradas pelo sistema de produção. Desde que há determinadas fábricas, é necessário que haja quem consuma (compre, use ou venda, jogue fora e compre de novo) o que elas produzem, e em ritmo imposto pelo ritmo de produção.
Finalmente, quem é que “sai ganhando” com a estabilização do comportamento social, a legitimaçao e internalizaçao dos comportamentos aceitos ou necessários à estabilidade social, a ocultação de realidades desestabilizadoras ou não conformes com a identidade ideologica? Concretamente: por que é que há censura à imprensa escrita e falada, controle absoluto da televisão, uniformização do sistema escolar, assim como fenômenos semelhantes? A função mais profunda da ideologia é, assim, a de estabilizar o poder, cimentando as relações sociais existentes ou legitimando as que os detentores do poder resolvem criar, e desviando a atenção pública dos problemas que possam enfraquecer a posição de quem está no comando.
Tendo em vista estas quatro funções da ideologia, podem-se descrever os quatro tipos de função crítica correspondentes. A crítica tende, assim, a ser a superação da ideologia. A consciência crítica é a que se torna paulatinanente capaz de detectar os planos, a realizaçao e os resultados dos acontecimentos. A crítica é, entretanto, também autocrítica. Desde que não existe ciência que atinja perfeitamente o próprio objeto e compreenda exatamente o que ela estuda, existe sempre uma margem de conhecimentos herdados e não problematizados, que velam a realidade, legitimam atitudes e tendem a estabilizar as bases de um poder. Neste sentido é que se diz que não existe ciência neutra, e que o princípio proclamado pelos tecnocratas, de que a ciência e intocável porque imparcial, é mais uma afirmação ideologica.
Finalmente, a crítica, como superação de uma ideologia, é a superação dos acontecimentos que geram e alimentam uma ideologia, ou que dela resultam, reforçando-a. Não existe formação da consciência crítica sem uma atividade consciente e atenta. Se as palavras não correspondessem a posições e comportamentos, não teria sentido pronunciá-las nem menos ainda censurá-las.
3. COMO NASCE A CONSCIÊNCIA CRÍTICA
Daqui a terceira pergunta fundamental: como nasce a consciência crítica?
Estritamente falando, dever-se-ia formular uma resposta para cada tipo de consciência. A um processo de nascimento da consciência já acenamos: a consciência se forma no seio de uma série de comportamentos herdados que incluem a pessoa no seio de uma comunidade histórica. Este tipo de consciência se move unicamente, como vimos acima, no âmbito de uma ideologia, e é a partir dela que julga o que vive e vê.
Aliás, a ideologia comanda a própria maneira de ver as coisas. As pessoas acreditam "ver a realidade de maneira objetiva" quando a vêem totalmente dentro da própria ideologia. É dela que as pessoas tiram os modelos de planos, os critérios de reflexão e os argumentos de crítica. Então somos prisioneiros da ideologia? É aqui que entra o sentido mais preciso de "conscientização" ou formação da consciência crítica. Ambas as expressões significam daqui para a frente a libertação frente as amarras da ideologia.
A ideologia, vimos acima, tem duas raízes: ela é herdada da tradição histórica do grupo em que vive e se forma ao longo da vida deste grupo. Participamos, pois, de uma ideologia seja por "herança", seja por "formação". Estritamente falando, o mecanismo da herança nos é explicado pela psicologia, enquanto a sociologia procura destrinchar os caminhos da "formação".
O problema central com que se debate a psicologia é o do impacto das experiências vividas sobre o comportamento dos indivíduos como dos grupos humanos. É notável como acontecimentos vividos ainda no seio materno ou nos primeiros anos de vida .influenciam e chegam mesmo a determinar comportamentos até na mais tardia idade madura. Não é só. Os acontecimentos vividos nem sempre são atitudes paternas ou maternas, mas fenômenos físicos, como tempestades, fatos grandiosos ou violentos. Isto não significa, entretanto, que somos filhos das tempestades reais ou figuradas, vividas na infância ou na pré-infância. Nós somos também arquitetos de nós mesmos.
É aqui que entra a análise sociológica mais significativa para o nosso tema. A partir de meados do século passado, com o nascer e desenvolver-se da indústria, houve um tipo de comportamento que se afirmou sobre os outros e tende sempre mais a se tornar o comportamento básico do homem em sociedade. Para viver, o homem necessita de determinadas coisas: alimento, vestuário, habitação, meios de locomoção e comunicação. Para viver, o homem precisa de produzi-los. O ato de produzir se tornou, nestas quinze décadas (e se afirma sempre mais como tal) a principal atividade nas sociedades em que vivemos. É em função da sua capacidade de produzir que o homem é sustentado e educado na infância, remunerado na maturidade, alijado e abandonado na velhice.
A educação não só transmite as noções e os hábitos necessários à produção, mas acabou reproduzindo e internalizando na escola os comportamentos e as estruturas de produção que nascem na fábrica. A fábrica educa não só os operários que nela passam oito ou mais horas por dia. A fábrica "educa" também os filhos e as esposas dos operários, determinando-lhes novos papéis na família e na sociedade .
Nas sociedades pré-capitalistas ou nas comunidades rurais, os costumes são outros não apenas pela conservação de tradições culturais. Se os migrantes esquecem estas tradições ao virem para a cidade industrializada, não é unicamente pela distância. É que a necessidade de sobreviver e a nova maneira de produzir lhes impõem costumes novos, novas maneiras de se relacionar com os colegas, os familiares , com o mundo em geral.
Resumindo, podemos dizer que a consciência nasce do confronto entre a matéria do mundo e a realidade espiritual encarnada no homem. Pelo lado psicológico não é muito difícil compreender como é que o impacto material do mundo influencia nossas reações psicológicas. Afinal, "todos" somos homens e nascemos pelo mesmo processo...
Como se pode, entretanto, compreender a afirmação pelo lado sociológico? Nem todos somos operários , nem todos estamos empenhados no que se chama mais estritamente "produção" . E válido afirmar que todos somos influenciados - ou até mesmo "determinados" pela maneira como se produz? A afirmação é muito complexa, e não é possível acenar a todas as significações que ela não tem. Mas podemos sintetizar seu sentido mais direto e fundamental.
Não falamos simplesmente da produção como tal, mas sim de produção como condição para sobrevivência. Todos nos alimentamos, vestimos, nos locomovemos comunicamos. Precisamos disso para sobreviver. Mas nem todos produzimos alimentos, vestuário, habitação ou quaisquer outros objetos. Nós sobrevivemos graças a objetos estritamente necessários produzidos por outros. O operário, além disto, tem que trabalhar estritamente na produção destes objetos, senão não sobrevive. Isto quer dizer: para o não-operário, a produção é necessária à sobrevivência porque ele necessita ter o que consumir para viver. Para o operário, a necessidade é mais radical: ele tem necessidade de se empenhar na própria produção, a fim de obter os objetos graças aos quais ele pode sobreviver.
Esta observação é muito importante e sublinha o papel da produção no nascimento da consciência. Além de produzir objetos necessários à sobrevivência, o sistema de produção faz nascerem também determinadas relações entre as pessoas que consomem e as que produzem, quer sejam as mesmas, quer sejam totalmente distintas. A produção como processo faz surgirem determinadas "relações de produção" entre os que são operários e os que não são. A relação atualmente mais visível sob o aspecto da consciência que se desenvolve é a "educação".
Nas oficinas artesanais e nas comunidades pré-capitalistas, o artesão ou o camponês fazia tudo: planejava, executava, vendia. A fábrica racionalizou tudo e dividiu as tarefas: quem planeja é um grupo de pessoas, quem executa e outro grupo, e até quem consome se diferencia totalmente. A industrialização capitalista trouxe consigo uma divisão de tarefas que marca muito profundamente as relações de produção. A proliferação de escolas profissionalizantes responde à necessidade crescente de formar gente para a produção, enquanto as universidades desenvolvem um processo sempre mais refinado de seleção e formam os grupos destinados às funções intelectuais.
E tudo gira em torno da fábrica, da produção industrial (com descaso enorme e quase incompreensível pela agricultura), de uma maneira que vem sendo crescentemente criticada dentro do próprio sistema capitalista, pelos efeitos altamente deletérios. Talvez fosse saudosismo falar em desaparecimento de tradições culturais. Certamente é crime de lesa-humanidade forçar as populações mais "pobres" da América Latina a viverem como vivem. Talvez fosse romantismo falar em defender a beleza da natureza. É certamente um crime contra o universo extinguir a vida na atmosfera, nas águas, na terra.
Concluindo, podermos dizer que a capacidade humana de planejar, executar, controlar e testar se exercita através da reflexão aliada à atividade, à maneira como se vive ou sobrevive. A consciência nasce do confronto entre a matéria e o espirito humano. Este confronto se realiza primariamente no ato de produzir, ou seja, na manipulação da matéria-prima para a produção dos objetos necessários à sobrevivência humana. O processo de produção tem uma conseqüência imediata na qual se realiza também este confronto com a matéria: são as relações de produção. É no confronto com a matéria e com as relações de produção que a consciência nasce e se desenvolve.
Se este confronto e estas relações são vividas pacificamente, a consciência acaba internalizando formas de comportamento e de relações que são fictícias. Parece-me necessário acenar a um exemplo bem atual: a tese racista de que índios e negros são incapazes e inferiores. Suposto que haja uma supremacia real dos "brancos": ela vem da raça e da cor, ou do fato de que estes sempre detiveram em suas mãos - pelo uso do poder - o sistema e o controle da produção?... Os pretos e índios são pobres porque inferiores, ou são mantidos na pobreza pelo lugar que ocupam no sistema de produção?
Este exemplo nos remete ao que dissemos sobre a ideologia. Quantas afirmações nossas não são, assim, puramente fruto de uma convicção puramente herdada? Assim, a consciência critica começa com a capacidade critica de questionar os próprios pressupostos . A raiz da consciência é o confronto, o fundamento da crítica é a humildade.

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