sábado, 27 de março de 2010

Situação da (in)segurança alimentar no Brasil

Situação da (in)segurança alimentar no Brasil
Tasso de Sousa Leite1, José Paulo Pietraffesa2


RESUMO: A partir da definição apresentada pelo Brasil na Cúpula Mundial d Alimentação, em 1996, que vê a segurança alimentar e nutricional como um direito humano básico e a insegurança alimentar (fome) como violação desse direito, procura-se neste trabalho traçar um panorama da fome e pobreza no Brasil.

O conceito de segurança alimentar foi definido de forma bastante clara no documento oficial do Brasil, apresentado na Cúpula Mundial da Alimentação em 1996. O documento sistematiza o conceito da seguinte forma:

"Segurança Alimentar e Nutricional significa garantir a todos acesso a alimentos básicos de qualidade, em quantidade suficiente, de modo permanente e sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, com base em práticas alimentares saudáveis. Contribuindo, assim, para uma existência digna em um contexto de desenvolvimento integral da pessoa humana".

Essa definição implica uma abordagem da segurança alimentar como um direito humano básico e da insegurança alimentar (fome) como violação desse direito. Com base nessa definição, procura-se neste trabalho traçar um breve panorama da fome e pobreza no Brasil. O trabalho está organizado da seguinte forma: o item 2 apresenta uma discussão sobre os principais conceitos utilizados neste trabalho. O item 3 discute, com base no "Relatório da insegurança alimentar no mundo" (SOFI 2000), do Fundo das Nações Unidas Para a Agricultura e Alimentação, (FAO), a relação entre fome e subnutrição e a disponibilidade de alimentos. O item 4 apresenta os números da pobreza e indigência no Brasil, com base nos vários estudos que utilizam a abordagem da insuficiência de renda. O item 5 discute as causas estruturais da fome e da pobreza no Brasil (concentração de riquezas). Por fim, no item 6, apresentam-se as considerações finais.

REFERÊNCIAS CONCEITUAIS E METODOLÓGICAS

A discussão acerca do problema da segurança alimentar compreende a utilização de pelo menos três conceitos: pobreza, fome e desnutrição. De acordo com Monteiro, apud Takcgi, Silva e Grossi (200, 1 p. 17), há uma estreita relação entre esses conceitos, mas cada um possui uma definição própria. A pobreza ocorre quando, por falta ou insuficiência de renda, as pessoas não conseguem ter acesso aos meios de subsistência básicos, tais como alimentação, saúde, habitação, vestuário e educação, entre outros elementos necessários para uma vida com o mínimo de qualidade. A fome ocorre quando as pessoas não conseguem obter uma alimentação diária que supra suas necessidades de energia requeridas para a manutenção de seu organismo, considerando as várias atividades físicas normais do ser humano. A desnutrição, que geralmente acompanha as situações de fome e pobreza, decorre da inadequação alimentar tanto nos aspectos quantitativos (energéticos) quanto nos qualitativos (nutrientes).




Isso implica dizer que a fome não é a única causa da desnutrição. Quando uma determinada comunidade é acometida por fome, inevitavelmente acontecerá a desnutrição. Mas é bastante comum a ocorrência da desnutrição em pessoas que possuem suas necessidades energéticas atendidas, ou seja, que não "passam fome". Especialmente entre a população infantil, a desnutrição geralmente ocorre devido a uma inadequação qualitativa da dieta, agravada pelo desmame precoce, e à precariedade das condições sanitárias. Monteiro (1995) esclarece, ainda, que pode haver situações de generalizada pobreza em uma determinada localidade (devido à precariedade do acesso à moradia, educação, saneamento básico), sem que a sua população passe fome.

Pode-se também adicionar uma outra distinção conceitual importante: pobreza absoluta e pobreza relativa. O significado do primeiro conceito é similar ao conceito de pobreza visto anteriormente. O segundo se refere às situações de desigualdade social e à concentração da riqueza. Em termos hipotéticos uma sociedade pode apresentar elevados níveis de desigualdade e baixos índices de pobreza (absoluta); ou ainda, pode ser uma sociedade relativamente igualitária sem que a população tenha as suas necessidades básicas atendidas. No caso do Brasil convive-se com os dois tipos de pobreza, e ambas apresentam níveis absurdamente elevados. Mais do que isso, há uma estreita relação de causalidade entre elas, ou seja, a desigualdade na distribuição de riquezas é fator determinante dos altos índices de pobreza.

Essa distinção conceitual se reflete também em várias formas de se quantificar o problema. De forma geral, pode-se agrupar esses métodos em duas grandes linhas. A primeira se baseia na mensuração das necessidades básicas e utiliza os chamados métodos diretos. Nessa linha, desenvolvem-se pesquisas sobre a adequação entre o consumo de calorias e proteínas e as características físicas das pessoas (como altura e peso), considerando os tipos de atividades físicas que elas desempenham. Os indicadores mais utilizados são o consumo calórico e os dados antropométricos.

A outra linha de pesquisa prioriza os chamados métodos indiretos (ou "métodos da insuficiência de renda"). As pesquisas desenvolvidas com essa orientação metodológica pressupõem que uma alimentação adequada ou a satisfação de outras necessidades básicas podem ser inferidas a partir da mensuração da renda familiar.

Não há, evidentemente, nenhuma incompatibilidade entre essas duas linhas de pesquisa. No entanto, devido ao fato de serem em maior número e mais atuais, priorizaremos na exposição a seguir as pesquisas que se baseiam nos métodos indiretos. Além disso, acreditamos que há bastante evidências de que a insuficiência de renda é fator determinante da situação de fome e pobreza de grande parte da população brasileira. A esse respeito vale citar as palavras de (Takagi, Silva e Grossi (2001):

"No caso brasileiro, não há dúvida que a grande causa da falta de acesso aos alimentos, bem como da desnutrição infantil, é o baixo nível de renda. A Pesquisa Nacional de Saúde e Nutrição (PNSN) de 1989 constatou que ligeiros acréscimos na renda domiciliar traduzem-se em melhor desempenho no crescimento da população até 25 anos de idade. Hoffmann (1995) também constatou correlação negativa entre prevalência de retardo no crescimento na infância e o rendimento mediano das famílias destas crianças."



As estimativas do SOFI 2000 para o Brasil estão resumidas no quadro abaixo.



Disponibilidade de alimentos
Consumo recomendado
Consumo Médio
Déficit de calorias
Total de pessoas
Proporção de subnutridos

2.960
1.900
1.659
250
15,9
10% da

KPD*
KPD*
KPD*
KPD*
milhões
população

*(KPD = kcal/pessoa/dia)




FOME E DISPONIBILIDADE DE ALIMENTOS

A FAO é responsável pela realização e divulgação de um dos estudos mais abrangentes sobre (in) segurança alimentar no mundo. Um dos objetivos centrais do relatório "Estado da insegurança alimentar no mundo (SOFI)" é monitorar o cumprimento das metas de redução da pobreza e desnutrição traçadas pelos 186 países presentes na Cúpula Mundial da Alimentação, realizada em Roma em 1996.

Uma das principais constatações da segunda edição do Relatório da FAO, o SOFI 2000, é que a situação da insegurança alimentar no mundo praticamente não mudou desde o primeiro relatório. Segundo o SOFI 2000, a estimativa do número de pessoas subnutridas no período 1996-1998, é praticamente a mesma do período anterior (1995-1997): 826 milhões de pessoas subnutridas no mundo. Desse total, 792 milhões vivem nos países em desenvolvimento e 34 milhões nos países desenvolvidos. Isso mostra que ainda estamos longe de cumprir a meta da Cúpula Mundial, de reduzir pela metade o número de pobres até 2015. Segundo o diretor-geral da FAO, para alcançar essa meta, a taxa de redução do número de pobres deveria sair dos atuais 8 milhões de pessoas por ano para, no mínimo, 20 milhões de pessoas por ano, até 2015 (SOFI, 2000).

O método utilizado pela FAO para estimar o contingente de subnutridos em um país baseia-se nos seguintes critérios: calcula-se, com base nos dados sobre produção, comércio e estoques de alimentos, a disponibilidade de ca­lorias per capita; estima-se a necessidade calórica da população, considerando a diferença entre os diversos grupos (idade, gênero etc.); e, por fim, com­binam-se esses dados com informações sobre o consumo de alimentos e a dis­tribuição de renda. Consideram-se subnutridos aqueles que consomem menos calorias que o mínimo esta­belecido.

Como já era esperado, o estudo revela que a disponibilidade de alimentos é bastante superior às necessidades mínimas estabelecidas para o caso brasileiro, mas ainda assim o país possui cerca de 16 milhões de pessoas subnutridas. A partir da última edição do Relatório, a FAO começou a estimar a gravidade da fome, através do cálculo do déficit de calorias. No Brasil as pessoas consideradas subnutridas consomem em média 1.659 calorias por dia e necessitam, portanto, de cerca de 250 kcal/pessoa/dia para atingir o consumo mínimo recomendado. Nos países desenvolvidos esse déficit é de 130 kcal/pessoa/dia, enquanto nos países onde a situação de fome é mais grave o déficit é de 300 kcal/pessoa/dia.

Cabe ressaltar que uma das maiores virtudes do Relatório da FAO, a sua amplitude, constitui-se também em um de seus pontos fracos. A abrangência mundial do estudo, que é uma condição para comparações internacionais, o torna pouco adequado para uma avalia­ção mais aprofundada da realidade de cada país. Alguns estudiosos do tema consideram que certas limitações metodológicas, como a não-consideração das perdas no decorrer do processo de produção de alimentos, levam a uma subestimação do número de pessoas subnutridas (Takagi, Graziano da Silva & Del Grossi, 2001).




No entanto, o maior mérito do Relatório da Insegurança Alimentar no Mundo é derrubar um dos mitos mais poderosos acerca do problema da fome. O Relatório mostra que dos 98 países em desenvolvimento somente 6 países não têm disponibilidade de alimentos suficientes para alimentar adequadamente as suas populações. O problema nos outros 92 países não é de disponibilidade de alimentos, mas de incapacidade de acesso aos alimentos produzidos. É, portanto, uma questão de distribuição.

Cabe ressaltar, no entanto, que após o Plano Real o país tem recorrido constantemente às importações de alimentos como uma estratégia para estabilizar os preços destes. Isso significa que, a partir de meados dos anos 90, a disponibilidade de alimentos para o abastecimento do mercado interno passa a depender fortemente das importações, gerando uma situação de profunda insegurança alimentar. Basta mencionar que a importação de grãos e fibras passou de cerca de 3 milhões de toneladas no início da década para 12 milhões em 1999.

POBREZA, INDIGÊNCIA E INSUFICIÊNCIA DE RENDA

O pressuposto básico dos estudos que utilizam a renda como principal indicador para estimar as situações de fome e pobreza é de que o nível de renda define o nível de acesso a uma alimentação adequada. Esses estudos possuem em comum a definição de valores de referência, denominados linha de pobreza (LP) e linha de indigência (LI). Normalmente, a LI é definida com referência ao valor de uma cesta básica de alimentos, enquanto a LP inclui, além da cesta, outros bens e serviços considerados imprescindíveis para uma vida mais saudável (moradia, transporte, saúde etc.). A partir dessas definições, considera-se pobre ou indigente a pessoa cuja renda se situa abaixo desses valores de referências.

No entanto, não há um consenso acerca do método mais adequado para se estabelecer esses valores de referências. Normalmente, os valores atribuídos às linhas de pobreza e indigência estão relacionados aos objetivos dos estudos e à natureza dos dados utilizados. Pode-se classificar os estudos que definem a pobreza pela insuficiência de renda em dois grandes grupos: aqueles que utilizam como LP e LI um valor único para todo o país e aqueles que partem da estrutura de consumo das famílias (Takagi, Graziano da Silva & Del Grossi, 2001).

A tabela 1 apresenta dados de pesquisa mais recentes sobre a situação da pobreza e indigência no Brasil. Antes de qualquer tentativa de comparação esses resultados devem, portanto, ser compreendidos à luz da metodologia utilizada.



Tabela 1 - Comparação da Proporção de Indigentes e Pobres, segundo autores selecionados - 1999



Brasil
Rocha (2000) % indigentes
Rocha (2000) % pobres
Paes de Barros et al. (2001) % indigentes
Paes de Barros et al. (2001) % pobres
Hoffmann (2001) % pobres
Fome Zero (2001) % de pobres

TOTAL
8,7
35,0
14,5
34,1
18,1
27,6

Metropolitana
7,1
36,9
-----
-----
10,1
19,1

Urbana Não-metropolitana
7,3
31,8
-----
-----
15,1
25,5

Rural
15,3
40,3
-----
-----
38,5
46,1


Fonte: Adaptado do Projeto Fome Zero, versão 3 (Instituto da Cidadania, 2001)



Os trabalhos de Paes de Barros et al. e de Hoffmann utilizam valores únicos para todo o país. Paes de Barros et al. utilizam os dados oficiais do Ipea. As LI e LP empregadas são as mesmas definidas para a Região Metropolitana de São Paulo. Hoffmann utiliza como linha de pobreza para todo o país o valor correspondente a um quarto do salário mínimo de agosto de 1980 (R$46,15 em setembro de 1999).

Uma das justificativas para se usar esse método é que sua base, o salário mínimo, deveria suprir as necessidades vitais das pessoas (alimentação, moradia, transporte, saúde...). A utilização mais freqüente desse método se deve à transparência e praticidade na coleta dos dados. No entanto ele possui a desvantagem da variação periódica do salário mínimo. Além disso esse método, como todos que utilizam como LP e/ou LI valores únicos para todo o país, não leva em consideração as diferenças regionais e nem as diferenças entre o mundo rural e urbano no Brasil (Takagi, Graziano da Silva & Del Grossi, 2001, p. 12).

O estudo de Rocha faz parte do grupo de pesquisas que partem do consumo das famílias para definir as linhas de pobreza e indigência. Os valores de referência são estimados a partir da estrutura de consumo das famílias e dos preços em cada região. Essa é uma tentativa de considerar as diferenças de padrões de consumo e de custo de vida entre as regiões e entre as áreas rurais e urbanas. Os valores estabelecidos por Rocha são os seguintes:

a) LI varia de R$ 20,37 (áreas rurais do Centro-Oeste) a R$ 41,86 (Região Metropolitana do Rio de Janeiro);

b) LP varia de R$ 47,14 (áreas rurais do Nordeste) a R$ 167,97 (Região Metropolitana de São Paulo).

O trabalho de Takagi, Graziano da Silva & Del Grossi utiliza também valores de referências regionalizados. O ponto de partida da metodologia definida por esses autores é a LP de U$ 1,00 por dia, utilizada pelo Banco Mundial. No entanto, foram introduzidas algumas adaptações importantes, como a imputação do autoconsumo das famílias rurais, a dedução de despesas com aluguel e prestação da casa própria e a regionalização dos custos de vida, considerando também as diferenças rural/urbano. Os valores estabelecidos como LP variam de R$ 62,29 (áreas rurais do Nordeste) a R$ 82,54 (Região Metropolitana de Salvador). Vale ressaltar que esse estudo foi elaborado como um subsídio ao Projeto Fome Zero do Instituto da Cidadania, lançado oficialmente pelo então candidato a presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva em Brasília no dia 16/10/2001. O Projeto Fome Zero encampou integralmente a metodologia proposta por esses autores para estimar os potenciais beneficiários desse programa.

A diferença nos resultados sintetizados na Tabela 1 se deve, portanto, à diferença dos métodos e valores usados para traçar as LP e LI. Note-se que a proporção de pobres é maior nos estudos de Paes de Barros e Rocha, que atribuem valores mais elevados para a LP adotada. Da mesma forma, devido ao valor da LP utilizada por Hoffmann, a sua estimativa da proporção de pobres fica mais próxima da proporção de indigentes calculada por outros autores. Os resultados apresentados por Takagi, Graziano da Silva & Del Grossi se situam abaixo da estimava apresentada por Rocha para o conjunto do país (27,6% contra 35%), devido à diferença dos critérios de regionalização da LP acima nas áreas rurais (46,1% contra 40,3%). Os autores esclarecem que o objetivo do estudo não é estimar com precisão as pessoas que "passam fome" – o que exigiria pesquisas mais abrangentes e refinadas –, mas estimar o público beneficiário do Projeto Fome Zero, que seriam todos aqueles que, por insuficiência de renda, estariam "vulneráveis à fome" (Takagi, Graziano da Silva & Del Grossi, 2001).

Cabe ressaltar que, apesar das diferenças metodológicas, todos os estudos, inclusive aqueles produzidos pelos órgãos governamentais, são unânimes em apontar a magnitude e seriedade do problema da fome e da pobreza no Brasil.

EVOLUÇÃO DA POBREZA NO BRASIL

A amplitude do problema da fome e da pobreza no Brasil pode ser mais bem compreendida a partir de uma série histórica mais longa, capaz de captar não só as oscilações conjunturais, mas também as tendências de longo prazo. Por esse motivo, optou-se por utilizar nesta seção a série de dados apresentada no trabalho de Paes de Barros et al., citado anteriormente.

A análise dos dados sobre pobreza e indigência nas últimas duas décadas mostra que a pobreza atingiu os níveis mais elevados no início dos anos 80, devido à crise e recessão do período, chegando a mais de 50% da população em 1983 e 1984. Em 1986, devido aos impactos do Plano Cruzado, os níveis de pobreza caem significativamente, chegando a 28%. Como se sabe, os efeitos desse plano foram bastante efêmeros, e, nos anos seguintes, até 1995, a pobreza voltou a crescer, se situando entre 40% e 45% da população. A partir do Plano Real a pobreza se estabiliza em torno de 34%.

Os próprios autores (Paes de Barros et al., 2001) observam que, apesar de se situar em novo patamar, esse nível de pobreza ainda é extremamente alto. Na verdade, se considerarmos todo o perío­do, veremos que a redução dos níveis de pobreza nos últimos vinte anos foi bastante modesta, de 40% em 1977 para 34% da população em 1999. A análise dos números absolutos revela que a lentidão desse processo não tem sido capaz sequer de acompanhar o crescimento populacional. O número de pessoas pobres passou de 41 milhões em 1977 para 53 milhões em 1999, um acréscimo de mais de 12 milhões de pobres na população total do país.

DISTRIBUIÇÃO ESPACIAL DA POBREZA E INDIGÊNCIA NO BRASIL

Apesar da diferença dos números, devido aos critérios adotados por cada autor, há uma tendência bastante clara em todos os estudos: a proporção de pobres e indigentes diminui nas áreas rurais e aumenta nas áreas urbanas.

Conforme mostrado anteriormente, os números apresentados no Projeto Fome Zero se situam um pouco abaixo das estimativas da pobreza (e muito acima da proporção de indigentes) calculadas por Rocha para o conjunto do país. Apesar disso, a proporção de pobres no meio rural estimada pelo Projeto Fome Zero é sempre maior do que em Rocha. De acordo com Takagi, Graziano da Silva & Del Grossi (2001), essas divergências nos resultados mostram que a metodologia proposta por eles foi mais eficiente em captar as diferenças de "custos de vida e hábitos alimentares entre as diferentes áreas de residência".

Mas deve-se observar que, apesar da pequena diminuição, a proporção de pobres e indigentes nas áreas rurais continua extremamente elevada. Em todos os estudos, a pobreza e a indigência no meio rural continuam, durante todo o período analisado, sendo proporcionalmente maiores do que nas áreas urbanas. Essa situação se repete em todas as regiões brasileiras, exceto no estudo de Rocha, no que se refere à estimativa de pobreza. Em todos os estudos a pobreza rural é proporcionalmente mais alta na Região Nordeste, variando de cerca de 50% (em Rocha e em Hoffmann) a 60% (Projeto Fome Zero) da população rural dessa região. Na Região Sul registraram-se os menores índices de pobreza rural, cerca de 22% em Rocha e em Hoffmann e de 28% segundo o Projeto Fome Zero. Na Região Norte as estimativas da pobreza rural variam de 38% (Projeto Fome Zero) a 45% (Hoffmann). No Centro-Oeste a pobreza atinge cerca de 34% da população rural (Rocha e Projeto Fome Zero). No Sudeste a proporção de pobres varia de 29% (Rocha) a 34% (Projeto Fome Zero).

Essa situação ganha uma conotação ainda mais estarrecedora se lembrarmos, como o faz José Ely da Veiga (2001), que a pobreza rural teima em persistir em níveis tão elevados mesmo após o brutal êxodo rural ocorrido nas últimas décadas.

Cabe ressaltar que até agora falou-se da pobreza em termos proporcionais. Se considerarmos os números absolutos fica evidente que o maior contingente de pobres está nas áreas urbanas. Como já foi dito anteriormente, é exatamente nessas áreas, especialmente nas regiões metropolitanas, que a pobreza e a indigência crescem mais. Apesar de estar presente em todos os estudos, essa tendência fica mais evidente no trabalho de Rocha, citada no Projeto Fome Zero (2001, p. 21). De acordo com essa autora, o agravamento da pobreza nas áreas metropolitanas está relacionado ao esgotamento dos efeitos redistributivos do Plano Real, já em meados de 1996, e aos ajustes econômicos desse período. O aumento da pobreza estaria mais diretamente ligado ao fechamento dos postos de trabalho de menor qualificação, acelerando o "processo de exclusão da mão-de-obra menos qualificada do mercado de trabalho".

CONCENTRAÇÃO DE RIQUEZAS: A CAUSA DA INSEGURANÇA

Conforme mostramos na seção “Fome e disponibilidade de alimentos”, as causas da fome no Brasil estão relacionadas à má distribuição e não à falta de alimentos. A incapacidade de acesso aos alimentos básicos e a outros bens e serviços necessários a uma qualidade de vida minimamente aceitável também não se deve, evidentemente, à insuficiência, mas à péssima distribuição de riquezas no país. Isso nos leva à conclusão óbvia de que as causas da pobreza no Brasil não devem ser buscadas nas flutuações de curto prazo da economia. Ao contrário são as causas estruturais que nos interessam: a desigualdade na distribuição de riquezas. Essa desigualdade se reveste de várias formas no país, mas basta aqui mencio­nar aquelas que determinam diretamente a falta de poder aquisitivo e acesso aos meios de produção:

a) concentração de terras. As raízes da concentração fundiária, por demais conhecida, remontam ao processo de ocupação territorial pelos colonizadores, iniciado com as capitanias hereditárias e consolidado pela Lei de Terras de 1850. A persistência ao longo dos séculos de um padrão de distribuição da propriedade da terra com níveis de desigualdade tão absurdamente elevados não pode ser, entretanto, explicada exclusivamente por esse particular processo de formação do latifúndio. Há que se somar a isso a histórica teimosia das elites brasileiras em não realizar uma verdadeira reforma agrária e o seu conseqüente desprezo pela agricultura familiar.

Uma breve análise dos dados Censo agropecuário de 1995/1996, do IBGE, é suficiente para ilustrar o exacerbado grau de polarização da nossa estrutura fundiária. Os estabelecimentos com menos de 10 hectares, cerca de 2,5 milhões de unidades que representam 50% do total de estabelecimentos, ocupam somente 2,2% da área total, a mesma área ocupada pelos 37 estabelecimentos com 100 mil hectares ou mais. Os estabelecimentos com menos de 100 hectares, 90% do total, ocupam 20% da área, enquanto os estabelecimentos com mais de 1.000 hectares, menos de 2% do total, ocupam 45% do total da área.

b) Concentração de rendas. A discussão sobre a desigualdade de renda terá como base os dados apresentados por Paes de Barros et al. (2001). O título do seu estudo, A estabilidade inaceitável: desigualdade e pobreza no Brasil, é bastante sugestivo e indica o sentido da exposição a seguir. Conforme mostrado na seção “Evolução da pobreza no Brasil”, a pobreza no Brasil, depois de uma pequena redução em meados dos anos 90, se estabilizou em um patamar ainda extremamente elevado.

Como já foi dito, essa persistência do fenômeno da pobreza não se deve a uma escassez de recursos. Uma rápida comparação com outros países pode ilustrar melhor essa questão. Comparando a renda per capita, o Brasil se situa entre o terço mais rico dos países do mundo, mas apesar disso apresenta níveis de pobreza (cerca de 30% da população) muito acima da média dos paí­ses com renda per capita similar (cerca de 10%). De acordo com Paes de Barros et al. (2001), "caso o grau de desigualdade de renda no Brasil correspondesse à desigualdade mundial média associada a cada nível de renda per capita, apenas 8% da população brasileira deveriam ser pobres".

Analisando as últimas duas décadas pode-se observar que a desigualdade de renda apresenta níveis assustadoramente estáveis. Durante quase todo o período a desigualdade, medida pelo coeficiente de Gini, se mantém com valor próximo de 0,60, sofrendo alterações somente no sentido ascendente. Esse nível de desigualdade só se verifica em outros três países: Guatemala, África do Sul e Malavi. Os dados mostram também que, em alguns anos, a renda dos 10% mais ricos chega a ser 30 vezes maior do que a renda dos 40% mais pobres. Considerando as rendas dos 20% mais ricos e dos 20% mais pobres, essa distância chega a 35 vezes.

O grau da desigualdade de rendas é tão profundo que permanece praticamente inalterado, mesmo quando a pobreza diminui em função de modificações na economia, como aquelas introduzidas por planos de estabilização. Segundo os autores citados, no que se refere ao Plano Real, por exemplo, os dados não demonstram que tenha havido "qualquer impacto significativo sobre a redução no grau de desigualdade, apesar de a pobreza ter sofrido uma redução importante" (Paes de Barros et al., 2001, p. 22).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A gravidade da situação de miséria de grande parte da população exige que se repudie com veemência as insistentes tentativas das elites em mistificar o problema. A sociedade brasileira não aceita mais os discursos demagógicos que buscam circunscrever a pobreza a situações e localidades específicas, para depois oferecer soluções eleitoreiras. Tal como o assistencialismo eleitoreiro deve ser rejeitado, também o economicismo tecnocrata, igualmente mistificador. Já está mais que evidenciado que o crescimento econômico, por mais importante que possa ser, é absolutamente insuficiente para se acabar com a pobreza no país. Da mesma forma, o equilíbrio macroeconômico e a estabilização da moeda produzem, no máximo, efeitos mitigadores e temporários.

Qualquer tentativa, minimamente séria, de atacar os problemas da fome e da pobreza deve considerar a sua causa mais profunda: a exacerbada concentração de riquezas no país. Esse diagnóstico aponta, necessariamente, para a urgência de um amplo processo de redistribuição da riqueza nacional. E essa não é, evidentemente, uma tarefa que possa ser "deixada" para o mercado. Ao contrário, a experiência internacional mostra que só se resolve o problema da pobreza e da desigualdade com a ação firme e planejada do Estado.

As políticas públicas de combate à fome e pobreza não devem, portanto, se restringir a "compensar" os efeitos de um modelo econômico concentrador. Deve-se romper com a artifi­­cial separação das chamadas "áreas" econômicas e sociais. Não se pode esperar que a "área" social resolva o problema da pobreza enquanto a política econômica continua a promover a exclusão. Ainda mais se considerarmos que o atual governo desarticulou as experiências que poderiam conduzir à verdadeira Política Nacional de Segurança Alimentar. Além disso, na ausência de um projeto social mais articulado, as políticas sociais do governo são concebidas de forma fragmentada e implementadas de forma desarticulada.

Acreditamos que as políticas de combate à fome e pobreza e a promoção da segurança alimentar devem ser pensadas como parte de um projeto alternativo de desenvolvimento, que tenha como eixo central a determinação de um crescente processo de inclusão social. Portanto, o combate à fome e pobreza implica necessariamente um amplo e sustentável processo de distribuição de riquezas, que, em linhas gerais, deve se traduzir em:

a) distribuição de renda. Políticas de geração de emprego e renda, recuperação do poder aquisitivo dos salários (especialmente do salário mínimo), programas de renda mínima etc.

b) reforma agrária. Aceleração do processo de reforma agrária (com assentamento de todas as famílias sem terra) e ampliação das políticas de apoio à agricultura familiar.

Acreditamos que esses devem ser os princípios orientadores da construção de um projeto de combate à fome e pobreza e de promoção da segurança alimentar. Tendo a diminuição das desigualdades como um princípio básico, e inegociável, pode-se partir para um amplo processo de discussão na sociedade visando identificar as políticas e os instrumentos mais adequados para se acabar de vez com a fome e miséria no país.

Referências

INSTITUTO CIDADANIA. Projeto Fome Zero: uma proposta de política de segurança alimentar para o Brasil (versão 3), 2001.

PAES DE BARROS, R; HENRIQUES, R.; MENDONÇA, R. A estabilidade inaceitável: desigualdade e pobreza no Brasil. Rio de Janeiro: Ipea, 2001. (Texto para Discussão, n. 800).

ROCHA, Sônia. Pobreza no Brasil: o que há de novo no limiar do século XXI? 2000. Mimeografado.

TAKAGI, Maya; GRAZIANO DA SILVA, José; DEL GROSSI, Mauro. Pobreza e fome: em busca de uma metodologia para quantificação do problema no Brasil. (Texto para discussão, n. 101). IE/UNICAMP. Mimeografado.

Autores
1Professor da Escola de Agronomia da UFG. tassol@uol.com.br
2Professor do Departamento de Sociologia da UCG

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